Wednesday, June 25, 2008

Crônica de um asilo

Setenta e sete anos, viúvo, vivendo num asilo. Seiscentos velhinhos, apenas dez por cento deles ativos. Gui faz parte desse grupo. Fora motorista de ônibus a vida toda. Teve o seu, inclusive, que ficava no quintal de sua bela casa. E um Simca que despertava a inveja da vizinhança. Não fez fortuna. Fez uma família bonita. Que perdeu a liga, é verdade, depois da morte da sua mulher.

Por essas e outras, foi parar num asilo. Mas não entregou os pontos. Viver, sempre, até o último minuto. Gui acorda cedo, às seis. Quando não está colaborando com as freiras, que dirigem a instituição, varre o alojamento, cuida das plantas, ajuda na cozinha, dirige para transportar os colegas. Até as nove da manhã ocupa as horas inventando atividades. Às nove, entretanto, é a hora da missa. Gui veste um terno, inclusive com gravata, e segue para a capela. Ritual diário estimulado pelas anfitriãs para incentivar a auto-estima. Ninguém entra na capela sem gravata.

Sua dedicação às tarefas domésticas acabou ganhando a confiança das freiras. Um bom subterfúrgio para esquecer a saudade da família e a letargia daquele espaço. Seus companheiros e companheiras não colaboram. Estão anestesiados mesmos. Aqueles que não falam sozinhos, ficam aguardando as ordens das matronas. E divagam esperando as horas passar.

Mas as religiosas simpatizam com Gui. Lhe deram até um espaço exclusivo para que ele desenvolva suas habilidades manuais. Aproveitou a deixa e já montou uma pequena oficina dentro do asilo com ferramentas velhas. Além de pequenos consertos, passa o dia reunindo sucata para montar brinquedos. Um modo delicado de fazer o tempo passar. Suas pequenas geringonças não ficam na prateleira, em todo caso. Gui segue até a cidade e vai oferecê-las com um argumento irresistível.

- compre, são os velhinhos do asilo que montam estes brinquedos.
Ninguém resiste ao argumento, ainda que marotamente editado. Somente Gui dá forma à imaginação, resgatando malícia infantil em avançada idade.

Gui perdeu o medo da vida. E dos julgamentos. De noite, todos os velhinhos vão assistir alguma novela na televisão. Ele não. Pega duas agulhas e vai fazer algum tricô. Já fez blusas, cachecóis. Nem sempre tão bonitos, mas quem se importa. É o jeito de interagir com a trama da sua vida. Que só fica triste quando os filhos somem por mais de seis meses sem dar notícias. Que pena. Não sabem o que estão perdendo. Nem tricô nem funilaria. A arte de transformar o tédio, a tristeza, a melancolia em pílulas de vida.






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